O ICMS E AS TRANSFERÊNCIAS DE MERCADORIAS ENTRE ESTABELECIMENTOS DO MESMO CONTRIBUINTE
26 ABR 2020
Este estudo parte da análise do conteúdo do Artigo 155, inciso II, da Constituição Federal, que estatui “compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir o imposto sobre … operações relativas à circulação de mercadorias...”. Esta é a primeira hipótese de incidência do ICMS, que une três importantes expressões: (a) operações, (b) circulação; e (c) mercadorias.
Por “operações”, conforme o entendimento doutrinário predominante, entendem-se atos jurídicos, ou seja, atos regulados pelo Direito como produtores de determinada eficácia jurídica. E, no âmbito do ICMS, estes atos envolvem operações econômicas relacionadas a saídas de mercadorias.
Já o termo “circulação” é interpretado como circulação jurídica, envolvendo a troca de titularidade da mercadoria, e não o mero deslocamento físico.
E, por fim, entende-se como “mercadorias” os bens móveis sujeitos à mercancia, ou seja, que estejam inseridos no processo econômico mercantil, sendo-lhes dado uma destinação/finalidade comercial.
À luz destes conceitos, pode-se concluir que a transferência de mercadorias entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo titular não se configura como fato gerador de ICMS, independentemente deles se localizarem no mesmo ou em diferentes estados. Neste sentido se inclina a quase unanimidade da doutrina e da jurisprudência, adotando a tese de que não há operação de circulação de mercadorias quando não houver a transmissão da sua propriedade.
Como exemplo tem-se a Súmula nº 166 do STJ, firmada em 1996, a qual possui o seguinte teor: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. Embora editada ainda antes da aprovação da Lei Complementar nº 87/1996, esta Súmula mantém-se hígida sendo aplicada em diversos casos recentes. Também as decisões do STF no AgRg no ARE n. 746.349, Rel. Min. Teori Zavascki, 2ª Turma, julgado em 16.09.2014 e no AgRg no ARE n. 764.196, Rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, julgado em 24.05.2016 reforçam este entendimento do STJ.
No que tange às transferências internas de mercadorias, não há maiores questionamentos sobre a não incidência do ICMS. O próprio art. 53 do Livro I do Decreto nº 37.699/97 (RICMS) estabelece o diferimento do imposto sem a transferência da obrigação tributária nestas operações:
“Art. 53 - Difere-se para a etapa posterior, sem a transferência da obrigação tributária correspondente, o pagamento do imposto devido por contribuinte deste Estado:
I - nas operações internas de remessa de mercadoria, a qualquer título, entre estabelecimentos inscritos no CGC/TE pertencentes à mesma pessoa;”
No entanto, em relação às transferências interestaduais, tal interpretação possui vozes discordantes não só nos órgãos de fiscalização estaduais como em meio à doutrina. E tais discordâncias não são totalmente destituídas de fundamento uma vez que as transferências interestaduais, ao envolverem mais de um ente federado, comportam a existência de dois sujeitos ativos tributários no qual apenas um deles poderá cobrar o imposto. Tal fato gera uma assimetria na distribuição dos recursos tributários que compromete o equilíbrio federativo previsto na Constituição Federal. Ou seja, a unidade federativa onde se localiza o estabelecimento remetente fica incapacitada de cobrar o imposto, enquanto a unidade federativa para onde foi transferida a mercadoria, poderá cobrar na integralidade o ICMS incidente sobre a operação seguinte.
Exemplificando, uma indústria do ramo de celulose localizada no estado do Paraná extrai madeira de matas de eucalipto plantadas no Rio Grande do Sul, realiza o seu picoteamento em uma unidade situada também neste estado e, em seguida, transfere sua produção para o estabelecimento industrial no PR. De lá, comercializa seus produtos dentro do próprio estado ou com clientes situados em São Paulo. Nessa hipótese, a madeira em pedaços é transferida do Rio Grande do Sul para o Paraná sem tributação a título de ICMS, haja vista que a unidade de picoteamento e a indústria pertencem ao mesmo titular. Somente nas etapas posteriores, quando houvesse a venda para terceiros, haveria tributação de ICMS por não se tratar de estabelecimentos do mesmo contribuinte. Assim, o Estado de origem – Rio Grande do Sul – nada receberia de ICMS enquanto o Paraná e, conforme o caso, São Paulo, receberiam cada qual a sua parte.
Tal desigualdade de tratamento motivou parte da doutrina a flexibilizar o entendimento a respeito de tais operações, defendendo a tributação nas transferências interestaduais e a não incidência nas transferências internas.
Nas palavras de Ives Gandra da Silva Martins e de Fátima Fernandes Rodrigues de Souza (1), “a mera circulação física da mercadoria só não é suficiente para caracterizar a incidência do imposto, quando a transferência se dá entre estabelecimentos da pessoa jurídica, situados na mesma unidade da Federação”. Entretanto, caso os estabelecimentos se situem em diferentes unidades federativas, “a circulação física assume relevância para configuração da incidência do imposto, a fim de que não se verifiquem distorções na arrecadação das diversas entidades da federação”.
Seguindo a mesma linha de raciocínio pode-se citar Geraldo Ataliba, Roque Antonio Carrazza e Marco Aurélio Greco, sendo que este último afirma claramente que “a) nas transferências internas de mercadorias, ainda que para fins de comercialização futura, não há fato gerador do ICMS; e b) nas transferências interestaduais, para fins de comercialização futura no Estado de destino, há fato gerador do ICMS” (2).
A própria legislação infraconstitucional leva ao entendimento de que poderia haver incidência do ICMS nestas operações. Veja-se o teor da Lei Complementar nº 87/96, mais conhecida como Leo Kandir:
“Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;
...
Art. 13. A base de cálculo do imposto é:
I - na saída de mercadoria prevista nos incisos I, III e IV do art. 12, o valor da operação;
...
§ 4º Na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto é:
I - o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria;
II - o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento;
III - tratando-se de mercadorias não industrializadas, o seu preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente.”
Tais normas são reproduzidas na legislação estadual do RS, nos artigos 4º, I e 10º, I e XV da Lei nº 8.820/89 e nos arts. 4º, I e 16, I, “a” e VI do Livro I do RICMS.
No entanto, estes dispositivos devem ser analisados com cautela, tendo sempre em vista os mandamentos constitucionais. Ou seja, quando indicam a saída de mercadorias como critério temporal do ICMS, eles estão em consonância com a Carta Magna. Porém, ao estender o comando de forma a abranger o campo de incidência do ICMS para a transferência interestadual entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, o enunciado se contrapõe ao texto Constitucional.
Nessa linha, tanto a Lei Complementar como as normas estaduais visaram a disciplinar o que a Constituição Federal não disciplinou; quiseram, na realidade, alargar a hipótese de incidência do ICMS numa tentativa de corrigir a disparidade entre estados criada pela interpretação do texto constitucional. No entanto, apesar da louvável intenção, padecem de inconstitucionalidade estes dispositivos que pretendem determinar a incidência do ICMS nas simples transferências físicas de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.
Como conclusão, pode-se afirmar que, embora geradora das distorções acima delineadas, a posição jurisprudencial prevalecente de não admitir a incidência de ICMS sobre operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, sejam eles situados em um mesmo ou em diferentes estados, está em concordância com o estabelecido na Constituição Federal.
De forma que, para corrigir as imperfeições de ordem financeira geradas pelo dispositivo constitucional em análise, o qual, como se viu, é responsável por distorções na distribuição das receitas de ICMS entre os estados, a única solução plausível seria a proposição de uma emenda constitucional. Nesta, talvez através da adoção de um sistema de repasses, poderia se corrigir este desequilíbrio financeiro de forma a que tanto o estado de origem quanto o de destino das mercadorias recebessem parte dos recursos arrecadados.
(1) MARTINS, Ives Gandra da Silva; SOUZA, Fátima Fernandes Rodrigues de. ICMS. Transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa situados em diferentes unidades da Federação. Transferência do ICMS incidente para aproveitamento no estado de destino. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 219. São Paulo: Dialética, 2013.
(2) GRECO, Marco Aurélio. ICMS – transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa. In: PRETO, Raquel Elita Alves (coord.). Tributação brasileira em evolução: estudos em homenagem ao professor Alcides Jorge Costa. 1. ed. São Paulo: IASP, 2015, p. 802-803.