MODULAÇÃO DAS RECENTES DECISÕES DO STF EM MATÉRIAS TRIBUTÁRIAS
10 MAR 2021
O novo CPC trouxe diversas inovações visando à agilização dos processos judiciais. Dentre elas, destaca-se a ênfase à uniformização do entendimento jurisprudencial devendo sua aplicação ocorrer desde a primeira instância até os tribunais superiores, adotando mecanismos já amplamente utilizados pelo sistema da common law. Assim, foi introduzido o Artigo 927 do CPC com a clara intenção de facilitar a aplicação e uniformização de precedentes. Ocorre, contudo, que as previsões trazidas neste dispositivo legal podem acabar por violar os princípios da segurança jurídica e da isonomia quando ocorrerem decisões que alterem a jurisprudência dominante ou mesmo que introduzam uma nova interpretação da legislação.
Para tentar minimizar estes efeitos negativos, o parágrafo 3º do Artigo 927 previu a possibilidade da modulação dos efeitos da decisão do tribunal de forma a proteger a confiança que o jurisdicionado deve ter nos atos do Estado. Desta forma, pode-se garantir a segurança jurídica, e, ao mesmo tempo, evitar indesejáveis impactos na sociedade decorrentes da retroatividade irrestrita da declaração de inconstitucionalidade da lei ou da nova interpretação que lhe tenha sido dada.
Analisando-se as possíveis consequências de tais dispositivos no âmbito do direito tributário, constata-se quão indesejáveis são as mudanças jurisprudenciais neste campo, capazes de gerar prejuízos aos contribuintes que agiram de boa-fé e de quebrar a necessária confiança na conduta do Estado e do próprio Poder Judiciário.
Nos últimos anos o STF tem decidido a respeito de relevantes temas tributários, por vezes trazendo profundas mudanças de interpretação jurisprudencial e em outras ocasiões suprindo omissões legislativas geradoras de longas disputas entre fisco e contribuintes. Em muitas delas, além da decisão em si, destaca-se a importância da modulação de seus efeitos e sua repercussão econômica na vida dos atores envolvidos.
Tradicionalmente, doutrina e jurisprudência entendiam que uma norma inconstitucional deveria ser fulminada desde o momento da sua criação, não produzindo qualquer efeito jurídico. Contudo, a tendência atual tem apontado para a flexibilização das decisões de inconstitucionalidade.
Assim, normas julgadas inconstitucionais podem produzir efeitos jurídicos através da manipulação da eficácia das decisões de inconstitucionalidade, por meio de modulação com efeitos ex tunc (desde a época), ex nunc (desde agora), e até com efeitos protraídos para o futuro.
Vamos tratar aqui, a título de exemplo, de três decisões proferidas pelo STF a respeito de matérias de Direito Tributário, na qual a respectiva modulação (ou a falta dela) produziu diferentes impactos nas partes envolvidas. São elas:
1) Necessidade de Lei Complementar para regulamentar a cobrança de Diferencial de Alíquota (DIFAL) pelos Estados e Distrito Federal (Processos: RE 1.287.019 - Tema 1093 de repercussão geral e ADI 5.469);
2) Incidência de ISS e não de ICMS sobre operações envolvendo softwares (Processos: ADI´s 5659 e 1945);
3) Não inclusão do ICMS na Base de Cálculo do PIS e COFINS (RE 574.706/PR – Tema 69 de repercussão geral).
1) Necessidade de Lei Complementar para Regulamentar a Cobrança de Diferencial de Alíquota (DIFAL)
Na sessão do dia 24/02/2021 o plenário do STF entendeu ser necessária Lei Complementar para disciplinar, em âmbito nacional, a cobrança do diferencial de alíquota do ICMS exigida pelos Estados. Por 6 votos contra 5, o colegiado considerou inadequada a regulamentação da matéria por meio do Convênio ICMS 93/2015 (1) do Conselho Nacional de Política Fazendária - CONFAZ. Assim, foram declaradas inconstitucionais as cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª e 9ª deste Convênio, sendo fixada a seguinte tese:
"A cobrança da diferença de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzida pela EC 87/15, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais."
Simultaneamente, foi aprovada a modulação desta decisão por nove votos a dois, de forma que seus efeitos passem a produzir efeitos apenas a partir de 2022, exercício financeiro seguinte à data do julgamento. Ou seja, as cláusulas continuam em vigência até dezembro de 2021, exceto em relação à cláusula 9ª, em que o efeito retroage a fevereiro de 2016, quando foi deferida, em medida cautelar na ADI 5464, sua suspensão (pagamento de DIFAL por empresas do Simples Nacional).
Para justificar a modulação, o Ministro Dias Toffoli afirmou que tal medida era necessária para evitar insegurança jurídica, em razão da ausência de norma específica, o que poderia gerar prejuízos aos Estados. Conforme o Ministro, durante esse período o Congresso Nacional terá a possibilidade de aprovar lei sobre o tema. No entanto, foram afastadas da modulação as ações judiciais em curso sobre a questão. Ou seja, ações judiciais em andamento questionando o pagamento da DIFAL deverão ser julgadas de forma favorável aos contribuintes.
A modulação foi justificada por argumentos meramente pragmáticos (evitar a perda de arrecadação dos Estados) e não jurídicos. Com isto, foi mantida a cobrança de tributo (ICMS - DIFAL) mesmo na ausência de Lei Complementar estabelecendo as normas gerais para sua cobrança, como exige o Artigo 155, II, § 2º, XII, "a" e "d" da CF. Tal fato, a nosso ver, contraria o Princípio da Legalidade, um dos fundamentos do Direito Tributário, ao mesmo tempo que desrespeita o Princípio da Isonomia, beneficiando aqueles que contestaram a norma declarada inconstitucional e prejudicando aqueles que se submeteram às exigências dos Estados.
2 - Incidência de ISS e Não de ICMS sobre Operações Envolvendo Softwares
Também na sessão de 24/02/2021 os Ministros do STF finalizaram o julgamento das ADI´s 5659 e 1945, nas quais foi definida a incidência do ISS e não do ICMS sobre operações envolvendo softwares.
O que chama a atenção na decisão é a drástica mudança de entendimento adotada pela Suprema Corte sobre o tema, fato que poderia levar insegurança jurídica às empresas atuantes no setor. Até então prevalecia o entendimento dado pelo próprio STF em 1998, no RE nº 176.626, segundo o qual incidiria ICMS sobre “softwares de prateleira” já que estes, por estarem inseridos dentro de uma cadeia mercantil e por serem comercializados em larga escala, detinham as características de uma mercadoria. Em contrapartida, haveria incidência de ISS sobre a comercialização de softwares desenvolvidos individualmente para cada cliente (“taylor made”), por possuíre a natureza jurídica de uma prestação de serviços.
A maior inovação, no entanto, do recente julgamsnto, foi a modulação dos efeitos da decisão proposta pelo Ministro Dias Toffoli, responsável pela tese vencedora. Os efeitos propostos passaram a valer a partir da publicação da ata do julgamento.
Segundo o advogado Saul Tourinho Leal, que participou do caso representando a ABES - Associação Brasileira das Empresas de Software, "A modulação nesse caso é emblemática, pois, numa sofisticação jamais empregada, se adiantou a oito hipóteses que gerariam judicializações futuras desnecessárias. A utilidade do julgamento foi garantida e o ISS reafirmado como sendo o imposto dessas operações."
Sem dúvida a modulação nos moldes em que foi feita era necessária, entre outros motivos, pela diversidade de cenários em relação à discussão: parte dos contribuintes recolhia apenas o ISS, parte apenas o ICMS, outros recolhiam os dois tributos, outros nenhum dos impostos. Com a modulação, foi possível evitar-se a cobrança simultânea dos dois impostos, bem como garantir o direito ao recolhimento do ISS nas operações já ocorridas.
Também definiu que os contribuintes que recolheram apenas ICMS no passado não poderão pedir a restituição de tais valores, mas, por outro lado, será vedada a cobrança do ISS pelos municípios. Já para as ações em curso, determinou o STF que os futuros julgamentos devem reconhecer a incidência do ISS e permitir o levantamento, pelas empresas, de depósitos e garantias apresentados a título de discussão da não incidência do ICMS.
Neste caso agiu bem o STF ao estabelecer a modulação de sua decisão, preocupando-se em estabelecer tratamento específico de acordo com a situação de cada contribuinte.
3 - Não Inclusão do ICMS na Base de Cálculo do PIS e da COFINS
Na decisão proferida ainda em 15 de março de 2017 no Recurso Extraordinário (RE) 574.706, o STF reconheceu a repercussão geral da mesma (Tema 69) e declarou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS. Prevaleceu a tese de que estas contribuições devem ser calculadas sobre a receita do contribuinte, e que o ICMS, tendo que ser repassado aos Estados, não deveria compor sua base de cálculo.
A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional entrou com Embargos de Declaração requerendo a modulação dos efeitos da decisão embargada para que produza efeitos ex nunc, após o julgamento dos presentes embargos. Requereu, também, o sobrestamento dos processos pendentes sobre a matéria, até definição final do caso.
Mesmo pendente de julgamento os embargos, a decisão tem permitido a diversos contribuintes requerer restituições, muitas delas de grande valor. Para se ter uma ideia, balanços financeiros de 2019 de empresas com ações comercializadas na Bolsa de Valores de São Paulo indicavam a existência de um contingente de, pelo menos, R$ 5,7 bilhões de créditos decorrentes de decisões judiais sobre a exclusão do ICMS da base do PIS e da COFINS. Tais valores, inclusive, preocupam a Comissão de Valores Imobiliários – CVM, em função da possibilidade destas empresas indicarem valores errados nas demonstrações financeiras uma vez que estes poderão ser substancialmente alterados conforme a modulação a ser estabelecida pelo STF (2).
Por outro lado, ao longo do processo, a União estimou um impacto de R$ 246 bilhões aos cofres públicos em cinco anos, e de 47 bilhões por ano, de acordo com um anexo da Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO de 2020 (3), caso se mantenha a decisão sem nenhum tipo de modulação.
Muitos contribuintes já ingressaram com medidas cautelares requerendo a aplicação imediata da decisão, permitindo-lhes aproveitar os créditos dos valores contestados. Porém, desde 2017 o STF tem indeferido estes pedidos e sobrestado as ações a respeito do tema, aguardando o julgamento do Embargos de Declaração e da respectiva modulação. A indefinição abrange não só a data a partir da qual a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS teria efeito, como também de qual o valor de ICMS que seria retirado da base das contribuições: o destacado em nota fiscal ou o efetivamente recolhido pela empresa.
O que chama a atenção neste caso é a discussão a respeito de qual seria o momento da aplicação do precedente editado sob a sistemática da repercussão geral. O legislador consignou que deveriam os tribunais fazê-lo após a efetiva publicação do acórdão (artigo 1.040 do CPC), porém não esclareceu a qual acórdão se referia, permanecendo dúvidas se é suficiente a publicação do primeiro acórdão ou se se deve aguardar a publicação do acórdão de eventuais Embargos de Declaração.
Somos da opinião de que a solução mais aderente à finalidade dos precedentes no Direito brasileiro é aguardar a publicação do acórdão que julgará os Embargos de Declaração, embora se reconheça a injustiça dos prejuízos causados aos contribuintes pela demora na prestação jurisdicional, sobretudo àqueles que pagaram o imposto cobrado de forma contrária à Constituição Federal.
(1) - O Convênio ICMS 93/2015 foi criado para disciplinar os recolhimentos de ICMS por parte das empresas de comércio eletrônico, de forma a transferir parte da receita deste tributo para os estados de localização dos consumidores finais.
(3) - https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:31478