ICMS nas Transferências e as Incertezas da ADC 49
16 NOV 2021
Recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu decisão nos autos da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49 reafirmando a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores: não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte (ARE nº 1.255.885/MS – Tema 1.099, ARE nº 1.213.482/RS-AgR, Súmula do STJ nº 166, REsp nº 1.704.133/DF-AgInt, REsp nº 1.125.133/SP – Tema 259, entre outros).
O STF considerou que a incidência do imposto pressupõe a transferência de titularidade do bem, sendo indevida a sua cobrança na hipótese de mero deslocamento da mercadoria entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica – seja em operações internas, seja em operações interestaduais. Ou seja, a circulação de mercadorias deve ser jurídica e não apenas física, pressupondo um efetivo ato de mercancia, para o qual concorrem a finalidade de lucro e a transmissão de posse ou propriedade.
Sob essa perspectiva, no âmbito da ADC 49, foi declarada a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir).
Opostos Embargos de Declaração, o Ministro Relator Edson Fachin votou por conhecer dos embargos e julgá-los procedentes tão apenas para modular os efeitos da decisão a fim de que tenha eficácia apenas a partir do próximo exercício financeiro (2022), no que foi acompanhado pelos Ministros Carmen Lúcia e Alexandre de Moraes.
Após pedido de vista, o Ministro Roberto Barroso acompanhou o voto do relator, porém ressalvando a aplicação do decisum aos processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da respectiva ata de julgamento. Também deu prazo até o início de 2022 para que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, sob pena de ficar reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos, Além disso, esclareceu que o acordão de mérito declarou a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do art. 11, § 3º, II, da Lei Complementar nº 87/1996, excluindo do seu âmbito de incidência apenas a hipótese de cobrança do ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular.
Nesta mesma Sessão Virtual ocorrida em outubro de 2021, o julgamento dos embargos foi novamente suspenso pelo pedido de vistas do Ministro Dias Toffoli.
Desta forma, faltando apenas 45 dias para o início do exercício de 2022 quando, se aprovada a modulação, deveriam começar a gerar efeitos as decisões da ADC 49, a demora do julgamento dos Embargos de Declaração acaba por provocar enorme insegurança jurídica para estados e contribuintes. Além disso, o próprio resultado do julgamento da ADC 49 causa distorções nas operações interestaduais por ser o ICMS imposto estadual embora de vigência nacional.
No que diz respeito aos entes estaduais, a não tributação das transferências interestaduais desequilibra a distribuição de receitas de ICMS entre as pessoas políticas envolvidas, ou seja, entre o estado do remetente e o do destinatário, colocando em xeque o próprio Princípio Federativo tão valorizado na CF.
Já no que tange aos contribuintes, as dúvidas se acumulam, sendo especialmente relevantes no que tange à possibilidade do aproveitamento dos créditos do imposto, ao esvaziamento de certos benefícios fiscais de ICMS e à autonomia dos estabelecimentos quando localizados em diferentes unidades da Federação. Além disso, a diferença de tratamento jurídico entre casos semelhantes leva a distorções concorrenciais que prejudicam empresas menos afeitas a riscos tributários.
Analisemos de modo mais profundo cada um desses pontos.
Com relação ao primeiro, a dúvida consiste na necessidade de estorno do crédito decorrente dessas operações, já que passará a não incidir o imposto na saída das mercadorias em transferências interestaduais. Tal questionamento decorre da disposição presente no próprio texto constitucional de que a isenção ou não incidência acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores (Artigo 155, § 2º, II, ‘b’). Será necessário aguardar-se a decisão final do julgamento dos Embargos de Declaração para ver se prevalecerá a posição do Ministro Barroso acima referida.
O segundo grande debate envolve os eventuais prejuízos que a decisão do STF pode trazer aos incentivos fiscais de ICMS os quais, em geral, são condicionados ao pagamento do imposto quando da transferência. Estes benefícios fiscais normalmente têm sua eficácia condicionada à incidência do ICMS nas operações de saídas de mercadorias, seja ou não para estabelecimentos do mesmo contribuinte em outros estados.
Aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, temos o caso do diferimento nas aquisições de mercadorias de produtor rural. Assim, uma indústria de arroz que adquire o produto em casca de produtores, ao deixar de recolher o ICMS nas transferências de arroz industrializado, passa a arcar com o imposto por responsabilidade incidente sobre as entradas do arroz em casca.
Por fim, outro importante questionamento surge em relação à validade do preceito da autonomia dos estabelecimentos frente à declaração da inconstitucionalidade do artigo 11, §3º, II, da Lei Complementar nº 87/96. Caso a autonomia fosse completamente extirpada de nosso ordenamento legal, seria possível a concentração dos débitos e dos créditos de ICMS no estabelecimento matriz da pessoa jurídica, mesmo que as filiais fossem localizadas em outros estados? Certamente tal posicionamento seria confrontado pela Administração Pública, pois também iria ferir o Princípio Federativo. Felizmente parece que o voto do Ministro Barroso mais uma vez pode esclarecer esta dúvida ao limitar o alcance do Acórdão apenas aos casos de transferência de mercadorias.
Desta forma, devem os contribuintes ficar atentos à deliberação final sobre a matéria, na expectativa de que sejam atenuadas algumas das discussões acima referidas mediante uma correta modulação dos efeitos da decisão da ADC 49.
No entanto, o que se pode concluir da presente controvérsia é que o judiciário, mais uma vez, ao invés de trazer soluções definitivas e racionais para um tema sujeito a grandes debates jurídicos, acabou por gerar ainda mais incertezas, dificultando o planejamento das empresas e submetendo-as a graves riscos fiscais e a prejuízos concorrenciais.