A insegurança jurídica sobre a validade da LC 175/2020 face à ADI 5835

15 JAN 2021

A insegurança jurídica sobre a validade da LC 175/2020 face à ADI 5835

O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), previsto no art. 156, III da Constituição Federal, é um imposto de competência municipal e distrital que tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, de serviços descritos na lista da Lei Complementar nº 116/2003.

Regra geral o ISS é recolhido ao município em que se encontra o estabelecimento do prestador, mas o artigo 3º da LC 116/2003 previa 22 exceções em que o recolhimento deveria ser feito ao município no qual o serviço era prestado. Normalmente tratavam-se de situações em que os serviços eram realizados no estabelecimento do cliente (tomador), por exemplo: limpeza de imóveis, segurança, construção civil, fornecimento de mão de obra, e outros.

Porém, para a CNM (Confederação Nacional dos Municípios), este modelo favorecia a concentração da arrecadação em cidades maiores. Como exemplo podem ser citadas as cidades da região metroplolitana de São Paulo Osasco (onde fica a sede do Bradesco), e Barueri, que são extremamente beneficiadas por concentrarem instituições financeiras que prestam serviços de administração de cartões de crédito/débito e leasing.

Numa tentativa de alterar esta sistemática promovendo uma melhor distribuição dos recursos arrecadados com o ISS, em 29 de dezembro de 2016 foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei Complementar 157/2016. Ao mesmo tempo que ampliou a lista de serviços da LC 116/2003, ela também inseriu três novos incisos ao artigo 3º desta lei prevendo novas exceções em que a cobrança do ISS deveria ocorrer no município de domicílio dos tomadores dos seguintes serviços:

"Serviços de plano de saúde e medicina:

4.22. Planos de medicina de grupo ou individual e convênios para prestação de assistência médica, hospitalar, odontológica e congêneres.

4.23. Outros planos de saúde que se cumpram através de serviços de terceiros contratados, credenciados, cooperados ou apenas pagos pelo operador do plano mediante indicação do beneficiário.

5.09. Planos de atendimento e assistência médico-veterinária.”

 “Serviços do setor bancário e financeiro:

15.01. Administração de fundos quaisquer, de consórcio, de cartão de crédito ou débito e congêneres, de carteira de clientes, de cheques pré-datados e congêneres.

15.09. Arrendamento mercantil (leasing) de quaisquer bens, inclusive cessão de direitos e obrigações, substituição de garantia, alteração, cancelamento e registro de contrato, e demais serviços relacionados ao arrendamento mercantil (leasing)."

No entanto, apesar de atenderem a uma antiga reivindicação dos prefeitos da maioria dos municípios, estes últimos dispositivos foram objeto de veto do então presidente Michel Temer sob o argumento de que a mudança traria “uma potencial perda de eficiência e de arrecadação tributária, além de redundar em aumento de custos para empresas do setor, que seriam repassados ao custo final”, ou seja, ao consumidor.

Imediatamente associações de municípios anunciaram um movimento para derrubar o veto no Congresso, o que acabou se concretizando na sessão do dia 30/05/2017. Com isto, a cobrança do ISS passou a ser feita no município do domicílio dos clientes de cartões de crédito e débito, leasing e de planos de saúde e não mais no município de localização do estabelecimento que prestava esses serviços.

A partir daí diversos municípios passaram a editar leis próprias regulando a tributação destes serviços e estabelecendo obrigações acessórias para as empresas prestadoras dos serviços descritos na nova lei.

Tais inovações criaram inúmeras dificuldades para as empresas dos setores envolvidos. Imagine-se que, por exemplo, uma empresa de planos de saúde sediada no Rio de Janeiro e que tivesse clientes nos mais de 5.500 municípios brasileiros. De uma hora para outra, ao invés de se submeter às normas apenas de seu município sede, teria que atender às obrigações acessórias de todos os municípios nos quais tivesse clientes.

Nesta senda, em 27/11/2017, a CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO SISTEMA FINANCEIRO – CONSIF e a CONFEDERAÇÃO NACIONAL DAS EMPRESAS DE SEGUROS GERAIS, PREVIDÊNCIA PRIVADA E VIDA, SAÚDE SUPLEMENTAR E CAPITALIZAÇÃO – CNSeg ajuizaram a ADI 5835 requerendo ao STF a suspensão do art. 1º da LC 157/2016 “que alterou a sujeição ativa e o aspecto espacial do imposto sobre serviços (ISS) – do município onde efetivamente prestado o serviço para o do domicílio do tomador – relativamente aos serviços de (i) planos de medicina de grupo ou individual, (ii) administração de fundos quaisquer e de carteiras de clientes, (iii) administração de consórcios, (iv) administração de cartão de crédito ou débito e congêneres e (v) arrendamento mercantil” .

Já em 23/03/2018, o Ministro Alexandre de Morais, relator do processo, deferiu a medida liminar alegando, entre outros motivos, “dificuldade na aplicação da nova legislação, com ampliação dos conflitos de competência entre municípios e afronta ao princípio constitucional da segurança jurídica”. Afirmou, ainda, que “essa alteração exigiria que a nova disciplina normativa apontasse com clareza o conceito de ‘tomador de serviços’, sob pena de grave insegurança jurídica e eventual possibilidade de dupla tributação ou mesmo ausência de correta incidência tributária”. Assim, foi suspensa a eficácia daquele dispositivo e, por arrastamento, de toda legislação local editada para sua direta complementação.

Recentemente, em mais um capítulo do imbróglio jurídico deste imposto, foi sancionada a Lei Complementar nº 175/2020, a qual, objetivando superar as omissões trazidas pela LC 157/2016, efetuou alterações e incluiu novos dispositivos na Lei Complementar nº 116/2003. Esta lei:

(a) impôs aos contribuintes o desenvolvimento de um “sistema eletrônico de padrão unificado em todo o território nacional” para apuração e recolhimento do ISS no Município do tomador (art. 2º);

(b) determinou a criação de um “Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (CGOA)” para “regular a aplicação do padrão nacional da obrigação acessória” (arts. 9º e 10) e definir o “leiaute, o acesso e a forma de fornecimento das informações” relativamente ao sistema (art. 10, § 1º);

(c) postergou a declaração e recolhimento do ISS relativo às competências de janeiro a março de 2021 (art. 13);

(d) definiu quem seria o tomador do serviço em cada caso;

(e) estabeleceu forma de repartição de receitas entre os Municípios do prestador e do tomador pelo prazo de dois anos;

(f) excluiu do inciso III do art. 3º da LC 116/03 o serviço do subitem 10.04 (agenciamento/corretagem/intermediação de contratos de leasing/ franchising/factoring) que voltou a ser tributado no local do estabelecimento prestador e

(g) vedou a imposição pelos municípios de outras obrigações acessórias além das constantes na própria LC 175/2020, tais como necessidade de inscrição em cadastros municipais e distritais ou de licenças e alvarás.

No entanto, mesmo com estas novas regras criadas com o objetivo de viabilizar a sistemática de cobrança do ISS no domicílio do tomador do serviço, os autores da ADI 5835 apresentaram, em 29 de setembro de 2020, uma petição ao ministro Alexandre de Moraes para que fosse mantida a liminar que suspendeu a nova sistemática de cobrança do ISS para os setores envolvidos. Na peça, as confederações argumentaram que os supostos esclarecimentos trazidos pela LC 175/2020 foram insuficientes para tornar viável o recolhimento do ISS no destino.

No caso dos planos de saúde e dos cartões, por exemplo, os autores afirmaram na petição que persistia a dificuldade de identificar o domicílio do beneficiário, que poderia ser o município que consta no cadastro do cliente na empresa, o declarado pela pessoa física à Receita Federal por meio do IRPF, o que consta nos cadastros municipais e estaduais para fins de IPTU ou IPVA ou o próprio domicílio eleitoral.

Também argumentaram que, para viabilizar a cobrança no local do tomador daqueles serviços, seria imprescindível que estivessem funcionando o novo comitê gestor e o sistema de recolhimento padronizado, o que até o momento não ocorreu.

Diante do exposto, pode-se chegar a algumas conclusões. Em primeiro lugar, fica evidente que as alterações na legislação do ISS promovidas pelas Leis Complementares 157/2016 e 175/2020 favorecem o federalismo fiscal tornando mais justa a distribuição dos valores de ISS arrecadados, haja vista que tendem a beneficiar maior número de municípios, sobretudo aqueles carentes de melhor arrecadação tributária em razão da inexistência em seu território de grandes prestadores de serviços. 

Em segundo lugar, esta alteração segue a tendência da maior parte das nações da União Européia que adotam o IVA - Imposto Sobre o Valor Adicionado, no qual a arrecadação ocorre no local onde se situa o  consumidor de mercadorias ou o tomador de serviços.

Por outro lado, permanece o desafio de ordem prática a respeito da implantação das inovações trazidas por estas leis, o que vai exigir um grande esforço de coordenação por parte dos órgãos governamentais e um sensível aumento de custos e de dificuldades operacionais aos contribuintes, ou seja, aos prestadores destes serviços.

No que tange ao aspecto jurídico, enquanto não houver pronunciamento do STF a respeito da petição apresentada pelos autores, predominará um ambiente de grande incerteza a respeito da persistência do objeto de ação da ADI 5835 após a edição da LC 175/2020. Tendo sido concedida a liminar suspendendo “a eficácia do artigo 1º da Lei Complementar 157/2016”, qual será a posição da Suprema Corte após as alterações introduzidas pela lei complementar que lhe é posterior? Considerará superadas as razões invocadas para o deferimento da medida liminar ou aceitará os argumentos das confederações dos serviços financeiros, de saúde, seguros e previdência privada?

Até que se tenha uma definição em um ou outro sentido, a insegurança jurídica permanecerá obstando a adoção dos novos dispositivos legais.

 

Referências Bibliográficas